Observa-se no texto um desvio quanto às normas gramaticais
referentes à colocação pronominal em:
Para responder à questão, leia a crônica “Seu
‘Afredo’”, de Vinicius de Moraes (1913-1980), publicada originalmente
em setembro de 1953.
Seu Afredo (ele sempre subtraía o “l” do nome, ao se
apresentar com uma ligeira curvatura: “Afredo Paiva, um seu
criado...”) tornou-se inesquecível à minha infância porque
tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador.
Como encerador, não ia muito lá das pernas. Lembro-me
que, sempre depois de seu trabalho, minha mãe ficava passeando
pela sala com uma flanelinha debaixo de cada pé,
para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernáculo¹e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava
sozinho.
Tratava-se de um mulato quarentão, ultrarrespeitador,
mas em quem a preocupação linguística perturbava às vezes
a colocação pronominal. Um dia, numa fila de ônibus, minha
mãe ficou ligeiramente ressabiada2
quando seu Afredo,
casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe
à queima-roupa, na segunda do singular:
– Onde vais assim tão elegante?
Nós lhe dávamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio,
no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos
que já me foi dado ouvir. Uma vez, minha mãe, em meio à
lide3
caseira, queixou-se do fatigante ramerrão4
do trabalho
doméstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse:
– Dona Lídia, o que a senhora precisa fazer é ir a um
médico e tomar a sua quilometragem. Diz que é muito bão.
De outra feita, minha tia Graziela, recém-chegada de
fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado
perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha
visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e
perguntou-lhe:
– Cantas?
Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo:
– É, canto às vezes, de brincadeira...
Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha mãe,
que lhe explicou o temperamento do nosso encerador:
– Não, ele é assim mesmo. Isso não é falta de respeito,
não. É excesso de... gramática.
Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarçado e falou:
– Olhe aqui, dona Lídia, não leve a mal, mas essa menina,
sua irmã, se ela pensa que pode cantar no rádio com
essa voz, ‘tá redondamente enganada. Nem em programa
de calouro!
E, a seguir, ponderou:
– Agora, piano é diferente. Pianista ela é!
E acrescentou:
– Eximinista pianista!
(Para uma menina com uma flor, 2009.)
1 vernáculo: a língua própria de um país; língua nacional.
2 ressabiado: desconfiado.
3 lide: trabalho penoso, labuta.
4 ramerrão: rotina.
Para responder à questão, leia a crônica “Seu ‘Afredo’”, de Vinicius de Moraes (1913-1980), publicada originalmente em setembro de 1953.
Seu Afredo (ele sempre subtraía o “l” do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: “Afredo Paiva, um seu criado...”) tornou-se inesquecível à minha infância porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, não ia muito lá das pernas. Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho, minha mãe ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada pé, para melhorar o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernáculo¹e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho.
Tratava-se de um mulato quarentão, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupação linguística perturbava às vezes a colocação pronominal. Um dia, numa fila de ônibus, minha mãe ficou ligeiramente ressabiada2 quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe à queima-roupa, na segunda do singular:
– Onde vais assim tão elegante?
Nós lhe dávamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que já me foi dado ouvir. Uma vez, minha mãe, em meio à lide3 caseira, queixou-se do fatigante ramerrão4 do trabalho doméstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse:
– Dona Lídia, o que a senhora precisa fazer é ir a um médico e tomar a sua quilometragem. Diz que é muito bão.
De outra feita, minha tia Graziela, recém-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe:
– Cantas? Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo:
– É, canto às vezes, de brincadeira...
Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha mãe, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador:
– Não, ele é assim mesmo. Isso não é falta de respeito, não. É excesso de... gramática.
Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarçado e falou:
– Olhe aqui, dona Lídia, não leve a mal, mas essa menina, sua irmã, se ela pensa que pode cantar no rádio com essa voz, ‘tá redondamente enganada. Nem em programa de calouro!
E, a seguir, ponderou:
– Agora, piano é diferente. Pianista ela é!
E acrescentou:
– Eximinista pianista!
(Para uma menina com uma flor, 2009.)
1 vernáculo: a língua própria de um país; língua nacional.
2 ressabiado: desconfiado.
3 lide: trabalho penoso, labuta.
4 ramerrão: rotina.