A verve social da poesia de João Cabral de Melo Neto mostra-se mais evidente nos versos:
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.
Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.
Formas primitivas fecham os olhos
escafandros ocultam luzes frias;
invisíveis na superfície pálpebras
não batem.
Friorentos corremos ao sol gelado
de teu país de mina onde guardas
o alimento a química o enxofre
da noite.
No espaço jornal
a sombra come a laranja,
a laranja se atira no rio,
não é um rio, é o mar
que transborda de meu olho.
No espaço jornal
nascendo do relógio
vejo mãos, não palavras,
sonho alta noite a mulher
tenho a mulher e o peixe.
Os sonhos cobrem-se de pó.
Um último esforço de concentração
morre no meu peito de homem enforcado.
Tenho no meu quarto manequins corcundas
onde me reproduzo
e me contemplo em silêncio.
O mar soprava sinos
os sinos secavam as flores
as flores eram cabeças de santos.
Minha memória cheia de palavras
meus pensamentos procurando fantasmas
meus pesadelos atrasados de muitas noites.
Gabarito comentado
Tema central da questão: A questão aborda a verve social (isto é, o engajamento crítico em questões sociais) na poesia de João Cabral de Melo Neto, poeta brasileiro conhecido por sua objetividade e preocupação com a realidade nordestina.
Explicação do tema: João Cabral, autor de obras como Morte e Vida Severina, utiliza frequentemente imagens do cotidiano nordestino para expor a difícil condição dos trabalhadores locais. Sua linguagem é direta e, mesmo sem sentimentalismos, alcança forte impacto social ao revelar, em detalhes duros, o sofrimento humano e as marcas deixadas pelo trabalho explorador.
Justificativa da alternativa correta – A: Os versos apresentam a realidade do trabalho nos engenhos de cana-de-açúcar. O trecho “A cana cortada é uma foice. Cortada num ângulo agudo, ganha o gume afiado da foice” já associa o instrumento de trabalho ao perigo. Quando o eu lírico menciona a própria cicatriz, evidencia-se a dimensão social e a violência inerente à vida dos trabalhadores, um elemento recorrente da obra de João Cabral. Esse enfoque direto, objetivo e concreto — tão característico do poeta — materializa a crítica social explicitada no enunciado.
Análise das alternativas incorretas:
B) Traz imagens abstratas (“escafandros”, “química, enxofre da noite”) sem conexão direta com questões sociais nordestinas. Falta o enfoque objetivo e crítico típico da poesia social de João Cabral.
C) Apresenta cenas surreais e pessoais (“a sombra come a laranja”, “o mar transborda de meu olho”), de cunho emocional, deslocando-se do debate social e da crítica objetiva.
D) Centra-se no universo íntimo e existencial (“me contemplo em silêncio”), sem abordar explicitamente realidades coletivas nem o contexto do trabalhador.
E) Trabalha imagens líricas e subjetivas (“minha memória cheia de palavras”, “meus pesadelos atrasados”), dissolvendo o foco social denunciativo buscado pelo enunciado.
Estratégias para evitar erros: Atenção à palavra-chave “verve social” no enunciado. Versos excessivamente subjetivos, voltados ao eu lírico ou à abstração, tendem a não atender ao foco cobrado. Busque referências objetivas à realidade, marcas do contexto social — procedimento útil para outras questões sobre poesia engajada.
Obras de referência: Literatura Brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos prosadores (Massaud Moisés), Para gostar de ler (Faria, Lygia e outros).
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