Em “Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o
assunto” (1º parágrafo), o termo em destaque constitui
Leia o excerto da crônica “Mineirinho” de Clarice Lispector
(1925-1977), publicada na revista Senhor em 1962, para responder à questão.
É, suponho que é em mim, como um dos representantes
de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de
um facínora1. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho2 do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi
no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar
de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos
irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade
diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e
já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça
que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve
para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso?
Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”.
Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.
Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo
e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha
maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero
morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado
será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir
o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no
terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto
e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu
ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo
minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O
décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro.
Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me
salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa,
que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados.
Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde
nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e
falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e
com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que
Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não
nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida
inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro,
e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não
nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que
em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como
vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria
de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se
rebentou o meu modo de viver.
(Clarice Lispector. Para não esquecer, 1999.)
1facínora: diz-se de ou indivíduo que executa um crime com crueldade ou
perversidade acentuada.
2Mineirinho: apelido pelo qual era conhecido o criminoso carioca José Miranda Rosa. Acuado pela polícia, acabou crivado de balas e seu corpo foi
encontrado à margem da Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.
Leia o excerto da crônica “Mineirinho” de Clarice Lispector (1925-1977), publicada na revista Senhor em 1962, para responder à questão.
É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora1. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho2 do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.
Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver.
(Clarice Lispector. Para não esquecer, 1999.)
1facínora: diz-se de ou indivíduo que executa um crime com crueldade ou perversidade acentuada.
2Mineirinho: apelido pelo qual era conhecido o criminoso carioca José Miranda Rosa. Acuado pela polícia, acabou crivado de balas e seu corpo foi encontrado à margem da Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.
Gabarito comentado
Tema central da questão:
O ponto-chave é a classificação morfológica da palavra "a" na frase "Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto". Isso envolve o domínio de morfologia (classes de palavras) e sintaxe (regência verbal).
Comentário sobre a alternativa correta (E – preposição):
No contexto apresentado, o termo "a" funciona como uma preposição. De acordo com a norma-padrão, o verbo perguntar é transitivo direto e indireto: exige um objeto direto (o que foi perguntado) e um objeto indireto (a quem se perguntou). A preposição "a" introduz “minha cozinheira”, funcionando como elo entre o verbo e o complemento.
Segundo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa: “Preposição é o elemento que liga dois termos, subordinando o segundo ao primeiro.” Assim, “a minha cozinheira” é o objeto indireto do verbo perguntar.
Análise das alternativas incorretas:
A) um pronome: Pronomes substituem ou acompanham substantivos, indicando pessoas, objetos, ou posse. Em “a minha cozinheira”, não ocorre substituição, e sim ligação. Portanto, não é pronome.
B) uma conjunção: Conjunções ligam orações ou termos semelhantes, atribuindo sentido lógico (adição, contraste, causa). Aqui, “a” não liga orações ou termos do mesmo valor sintático—não é conjunção.
C) um advérbio: Advérbios modificam verbos, adjetivos ou outros advérbios, indicando circunstância (tempo, lugar, modo, etc.). “A” não exerce nenhuma dessas funções, portanto, não é advérbio.
D) um artigo: Artigos definem ou indefinem substantivos (ex: a, o, uma, um), mas nesse caso, “minha cozinheira” já é determinada pelo pronome possessivo “minha”. O termo “a”, aqui, não exerce valor de artigo.
Dica para a prova:
Sempre identifique a função sintática e semântica do termo no contexto! Preposições ligam termos, enquanto artigos acompanham substantivos, pronomes substituem/acompanham, advérbios indicam circunstâncias, e conjunções unem orações. Atenção às pegadinhas de contexto!
Resumo:
A palavra “a”, na expressão “Perguntei a minha cozinheira”, é uma preposição exigida pela regência do verbo perguntar. Isso está perfeitamente alinhado à gramática normativa e à orientação dos maiores gramáticos brasileiros.
Alternativa correta: E) uma preposição.
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