Redação nota mil: o que as melhores redações têm em comum

Publicado em: 12/12/2022

Você já deve ter ouvido falar que a redação é uma etapa importante do Enem e que ela possui uma nota máxima possível. Mas já parou para pensar como fazer uma redação nota mil e o que as redações nota mil têm em comum?

Inicialmente, é preciso compreender que a correção da redação se baseia em quão bem você mobiliza as cinco competências necessárias para a produção textual, sendo:

  • 1 | Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa;

  • 2 | Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa;

  • 3 | Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista;

  • 4 | Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação; e

  • 5 | Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.

Exemplos de redação nota Mil

Agora que você sabe disso, leia um exemplo real de redação nota 1000 do Enem, escrita pela participante Maria Antônia de Lima Barra, com base no tema “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”.

O filme “Bastardos inglórios”, ao contextualizar cenas em meados do século XX, retrata o caráter elitista das exibições de cinema, uma vez que eram feitas em espaços de socialização das classes ricas da época. Na contemporaneidade, embora seja mais amplo, ainda há entraves a serem superados quanto à democratização do acesso às salas cinematográficas (e seus conteúdos) no Brasil. Nesse sentido, os resquícios de uma herança segregacionista no que diz respeito à frequência de locais de cinema geram a dificuldade em manter esse hábito em parte da população, o que perpetua a problemática.

Nessa linha de raciocínio, é fundamental ressaltar que a urbanização tardia e a constante gentrificação de espaços citadinos brasileiros são responsáveis pela permanência de costumes elitistas. Com efeito, o geógrafo Milton Santos, ao estudar a organização das cidades do Brasil, postula que o processo rápido e desorganizado de construção urbana provocou a marginalização de grande parte dos cidadãos. Desse modo, o acesso a shopping centers e demais espaços de lazer, como os cinemas, ficou restrito àqueles que possuem meios para tal, ou seja, à parcela da população que mora perto desses locais centrais – a elite –, ou que possui recursos para consumir esses produtos culturais – também a elite. Assim, no que tange à exibição de filmes, há resquícios de um caráter segregacionista, visto que a marginalização e a gentrificação excluem a massa populacional dos espaços cinematográficos, mantendo, estruturalmente, a problemática na sociedade brasileira.

Consequentemente, a dificuldade de manter o hábito de frequentar tais locais impede a plena democratização do acesso ao cinema. Nesse aspecto, a teoria do sociólogo Pierre Bourdieu acerca do “capital cultural” vai ao encontro da realidade discutida. Em seus postulados, Bourdieu discute a influência das referências socioespaciais nos costumes do indivíduo, concluindo que o desenvolvimento de valores que incluam certas culturas é imprescindível à manutenção dos costumes referentes a elas. Sendo assim, a herança segregacionista de frequência às salas cinematográficas e demais plataformas de exibição impede a construção de um capital cultural em parte da população do país, prejudicando sua democratização. Um exemplo disso é o relato da autora Carolina Maria de Jesus, em seu livro “Quarto de despejo”, no qual ela conta que, por residir na periferia, o dinheiro que seus filhos gastariam para assistir aos longas no cinema não seria suficiente nem para pagar seus deslocamentos.

Portanto, visando mitigar os entraves à resolução da problemática, algumas medidas são necessárias. Primeiramente, cabe ao Governo Federal criar programas de apoio à cultura cinematográfica, por meio de sistemas de assistência às famílias carentes e especialmente distantes dos centros de lazer, como “vales cultura”, junto a “vales transporte”, para que os processos conceituados por Milton Santos (como gentrificação, que é a expulsão de indivíduos de uma área para a construção de espaços elitizados) não interfiram no acesso populacional ao cinema. Por fim, é dever das escolas promover formas de desenvolvimento de valores referentes à cultura cinematográfica, através de exibições extra-classe, como em gincanas e trabalhos lúdicos, a fim de que tanto os alunos quanto os pais possam construir o “capital” postulado por Bourdieu, de modo que tenham interesse de frequentar os espaços de plataformas de filmes, ampliando, então, o acesso a elas. Enfim, o cenário retratado no longa “Bastardos inglórios” não será reproduzido no Brasil, haja vista que o aporte ao cinema será democratizado.

Agora, leia a redação da participante Stela Terra Lopes.

A questão do acesso ao cinema, apesar de não ser amplamente discutida, é um problema muito expressivo no Brasil atualmente. A gravidade do quadro é evidenciada pelos dados do site Meio e Mensagem: 83% da população brasileira não frequentam tal ambiente. Nesse contexto, percebe-se que o acesso ao cinema não é democratizado e convém analisar as causas e impactos negativos dessa situação na sociedade.

Em primeiro lugar, é preciso compreender as causas dessa problemática. Em um mundo marcado pelo capitalismo, é comum que, cada vez mais, seja fortalecido o sistema de mercantilização do lazer, ou seja, este passa a ser vendido por empresas em forma de mercadoria. Nesse sentido, nota-se que, muitas vezes, parcelas da população com condições financeiras mais baixas acabam não conseguindo ter acesso às atividades de lazer, como o cinema, devido aos preços, geralmente, inacessíveis. Além disso, outro fator que contribui para a falta do amplo acesso da população ao cinema é a localização no interior dos shoppings, os quais, normalmente, estão situados nos centros das grandes cidades, o que acaba dificultando o acesso de moradores de bairros mais afastados. Dessa forma, o cinema no Brasil torna-se um ambiente elitizado.

Em segundo lugar, é importante salientar os impactos negativos desse quadro na sociedade. Tendo em vista que a parcela mais pobre da população, geralmente, não consegue arcar com os custos de frequentar o cinema e sabendo que o acesso ao lazer é um direito garantido pela Constituição Federal, percebe-se a ocorrência da “Cidadania de papel”, termo cunhado pelo escritor paulista Gilberto Dimenstein, que diz respeito à existência de direitos na teoria (Constituição), os quais não ocorrem, de fato, na prática. Sob essa perspectiva, nota-se que a falta de democratização do acesso ao cinema gera exclusão social das camadas menos favorecidas e impede que elas possam usufruir de seus direitos.

Portanto, é mister que o Ministério da Infraestrutura, em parceria com o Ministério da Cultura, construa cinemas públicos, por meio da utilização de verbas governamentais, a fim de atender a população que não pode pagar por esse serviço, fazendo com que, assim, o acesso ao cinema seja democratizado e essa parcela da sociedade deixe de usufruir apenas de uma “Cidadania de papel”.

O que as redações nota mil tem em comum

Perceba que a segunda participante, assim como a primeira, mobiliza eficientemente as competências linguísticas.

Ambas demonstram ter compreendido adequadamente a proposta do respectivo ENEM, garantindo pontuação máxima na competência 2. Podemos perceber essa característica com base na forma que elas apresentam o recorte temático. A primeira, inclusive, cita um filme na introdução, estratégia bem-vinda, considerando que o tema versa exatamente sobre cinema.

Elas também mobilizam a competência 1 de forma eficiente. É importante destacar que as duas utilizam atentamente a pontuação, a flexão verbal, a regência, a concordância etc. Em especial, elas possuem também linguajar considerado rico, em que podemos ver expressões como “há entraves a serem superados”, “a constante gentrificação do espaço citadino brasileiro”, “é mister que” e “deixe de usufruir apenas de uma ‘cidadania de papel”.

Em relação à competência 3, podemos observar a boa seleção de dados apresentados nos textos. As duas participantes fizeram uma curadoria de dados importantes, como a citação de filmes, apresentação teóricos relevantes no cenário abordado, menção à Constituição Federal etc. Essas informações servem de base para os argumentos utilizados, reforçando a tese de cada uma.

Já a competência 4 pode ser percebida no uso de conectivos unindo os parágrafos. No primeiro texto, podemos ver o “nessa linha de raciocínio”, em que o primeiro desenvolvimento dialoga com a introdução, “consequentemente” unindo o segundo desenvolvimento ao primeiro e o “portanto” amarrando a ideia apresentada em uma conclusão direta. O segundo texto, por sua vez, evidencia ainda mais a coesão textual por incluir enumerações, como “em primeiro lugar” e “em segundo lugar”, além de também amarrar tudo com um “portanto”. Ademais, ambos os textos utilizam conectivos dentro de cada parágrafo, para garantir que as ideias estejam unidas sob a ótica micro e macro.

Por fim, a competência 5 é explicitada na conclusão dos textos. Para além de a introdução e o desenvolvimento servirem para apontar um direito sendo negado, ao mesmo tempo que defendem que todos tenham acesso aos direitos básicos, como o lazer, a conclusão das duas redações mobiliza ações encabeçadas principalmente pelo poder público, na figura do Estado brasileiro. O primeiro texto vai ainda mais além e destaca a importância da sociedade civil na mitigação dessa problemática.

Em outras palavras, é possível identificar que as duas redações possuem projetos nítidos, em que se percebe a introdução, o desenvolvimento e a conclusão textual, respeitando os limites do gênero e trabalhando de forma adequada os movimentos em cada parágrafo.

Realizando movimentos semelhantes e observando a execução de cada uma dessas habilidades, a sua redação também vai se destacar.